« Nós vamos levar um pouco mais de duas horas para chegar ao cume plano », grita Nicolas enquanto as pás do helicóptero desaparecem ao som de um zumbido crescente. Apesar das caixas, bidões, potes de metal, mochilas que estão amontoados com a gente na cabine da aeronave, Nicolas, encarregado da missão Ecologia no Parque amazônico da Guiana Francesa, sempre « emerge » graças a sua altura, com o sorriso nos lábios. Quanto a mim, eu desapareci atrás das coisas e, enquanto a pista de Rochambeau desaparece, eu já não sinto a minha perna direita. Isso não importa já que a excitação de participar dessa missão excepcional e a floresta que se esconde a 200 km/h, logo me fazem esquecer o peso das caixas de papelão contendo os mantimentos das equipes. Organizar uma missão científica com 36 pessoas em um lugar tão isolado como o cume plano (também chamado monte Itoupé) é um desafio. Nicolas entendeu tudo e durante alguns meses, ele passou muito tempo realizando os reconhecimentos desse maciço montanhoso que culmina a 830 m, o segundo mais alto da Guiana Francesa após os montes de Inini (860 m). Nessa altitude e apesar do “pequeno verão de março” (breve período de seca), o cume é recoberto pelas nuvens por uma boa parte do dia.  Serão necessárias algumas perigosas manipulações helitransportadas para instalar um acampamento nas encostas da montanha.

No dia 26 de fevereiro, a primeira equipe constata que o cerrado, identificado em uma imagem de satélite, situado a uns 6 km da montanha, não é tecnicamente “viável”. Olivier, responsável pela equipe Ecobios, indica a existência de outra zona de afloramento granítico, um pouco mais longe. A equipe decide então se abrir um caminho na base do facão em direção ao cume plano. Quanto ao piloto do Esquilo, ele ficou encarregado de uma perigosa missão: entregar motosserras com a ajuda de uma rede na extremidade de uma longa corda, impressionante espada de Damoclès sobre o dossel florestal*. O helicóptero entrega a encomenda com sucesso em uma clareira aberta pela ação dos ventos*, nas proximidades do local onde será implantada a Drop Zone (DZ), espaço que será preparado pelos agentes de Camopi do Parque amazônico da Guiana Francesa, com uns cinquenta metros de lado. Certamente, essa missão científica de ares épicos o demonstrará: Itoupé é com certeza o maciço montanhoso mais inacessível da Guiana Francesa. Situado entre Saül e a fronteira brasileira, à meia distância entre Camopi e Maripasoula, o monte Itoupé (contrariamente ao Inini) não fica no caminho de um grande rio, mas no limite das duas bacias vertentes, ao leste da Camopi, a oeste daquele da Waki. Por isso é difícil, utilizar a piroga até as lagoas estreitas para o deslocamento da logística de uma expedição cientifica dessa envergadura.

A oeste do cume plano se estende a planície da Waki, tão vasta quanto inexplorada.  Ao norte, os montes Bakra. Nesses espaços que o ignoram, o homem se torna um explorador consciente de imolar um solo virgem.  E mais ao sul, a famosa trilha dos Émerillons ligava a bacia vertente do Maroni ao do Oiapoque. Por milênios, os Ameríndios percorreram essa região. As únicas pistas humanas visíveis hoje são os talhos nos troncos das balatas (maçarandubas). Presentes até as encostas do monte Itoupé, essas árvores feridas evidenciam a atividade dos trabalhadores itinerantes, que no final do século XIX, iam até os pontos mais isolados da Amazônia para colher o látex dessa árvore que eles misturavam com o da hévéa (seringueira), a preciosa borracha.

O campo da missão científica é finalmente estabelecido sobre a encosta oeste do planalto, a 200 m na vertical de seu cume. Lá, próximos á “DZ”, os agentes do Parque amazônico da Guiana Francesa construíram um campo rudimentar, algumas mesas de madeira protegidas por lonas. Daí pra frente, cada um organiza seu espaço pessoal “cabana de lona”. Nicolas retorna aos objetivos científicos dessa missão:

« As espécies que vivem nessas altitudes constituem indicadores para a observação das mudanças climáticas futuras »…

Olivier, ecólogo na agência de estudos guianeses Ecobios, vai além: « trata-se de um estado inicial importante, um estado zero das espécies presentes». E assim se realizou a “primeira missão naturalista do Parque Amazônico da Guiana Francesa necessária para a compreensão global do sistema do qual o parque é gestor”.

A equipe de Oliver se concentra no estudo da botânica e aves. Na pura tradição das missões de prospecção naturalista, eles buscam e coletam as espécies de plantas, circulando livremente pelo conjunto do relevo. Eu optei por visitar no dia seguinte o cume junto com eles.  Michel B., especialista em pteridófitos (as samambaias), lidera essa primeira “subida”. Homem de meia-idade, geólogo de formação, Michel não tem cara de camponês lenhador, mas ele é um fascinante narrador do mundo das plantas e mais especificamente o das samambaias. «As samambaias são particularmente presentes na floresta submontanhosa. Durante a missão precedente há 30 anos, Jean-Jacques de Granville e Georges Cremers coletarão uma quantidade impressionante de espécies nessa região, mas na estação seca.  Cabe a nós reencontrá-las e descobrir outras! Todos esses elementos completarão a obra
Flora of the Guianas, a flora internacional das espécies vegetais de nossa região». Durante a expedição, 500 espécies de samambaias, orquídeas ou árvores serão identificadas.

Com o resto da equipe Ecobios, Guillaume e Vincent, eles percorreram as trilhas do cume plano durante mais de 4 semanas. Aberto pelos agentes do Parque amazônico da Guiana Francesa, o caminho não evita as sinuosidades*, nem as árvores derrubadas pelo vento! o traçado (“transecto”) é perfeitamente retilíneo. Isso facilita a implementação de diversos protocolos científicos cientificas, mas é também uma evidente forma de melhor se orientar. Quanto mais avançamos, mais íngreme é o caminho. Eu vejo a paisagem florestal evoluir, as grandes samambaias arborescentes se fazem mais presentes, as nuvens cobrem a atmosfera permanentemente, o musgo recobre indistintamente troncos, galhos e às vezes até as folhas, dando à floresta ares de Brocéliande.

Olivier, Guillaume e Michel traçam seu caminho nesse cenário fantástico. Sempre atentos eles recolhem diversas amostras de plantas. Todas as noites essas amostras são catalogadas, numeradas, classificadas e tratadas graças a uma máquina impressionante, que somente os botanistas tropicais conhecem: o secador. É uma estrutura envolvida por uma lona com amostras, ao pé é da qual um rechô a gás ou petróleo é colocado. Durante a noite o calor desidrata as folhas que são dispostas entre papelões e jornais, transformando-as em autênticas “espécimes de herbário”. Para a sorte de alguns, é também ó único meio de secar milagrosamente suas roupas para o dia seguinte. Assim, a concorrência violenta entre as meias encharcadas e uma raríssima folha de samambaia!

Para o bem da ciência, a equipe na floresta deve recorrer à técnicas impressionantes. Certa manhã, enquanto diversas equipes já estavam trabalhando, um disparo de arama de fogo foi ouvido a alguns metros. No coração do Parque Amazônico da Guiana Francesa, está fora de cogitação caçar maïpouri (anta) para comer no jantar! Eu me aproximo e constato que um dos membros da equipe IRD-AMAP “botânico especializado em bioinformática da arquitetura das plantas”, Daniel, aponta curiosamente sua espingarda na direção do dossel florestal. Após um novo estalo, um galho cai. Daniel sacode vitoriosamente seu troféu: um galho floreado. «Talvez uma nova espécie para a Guiana Francesa!» Com um sotaque acentuado do midi (região francesa), ele explica que é mais fácil atirar do que subir na árvore. Trata-se, na verdade, de identificar uma árvore através de suas folhas ou frutos, situados normalmente a mais de 40 metros de altura. A Unidade Mista de Pesquisa AMAP, que trabalha em diferentes pontos do planeta, da Nova-Caledônia até o Vietnã, está implantada na Guiana Francesa onde ela gere principalmente o herbário da Guiana Francesa.

Após suas explicações, Daniel, acompanhado por Jean-François e Michel T. desaparecem nos arbustos… deixando plainar na floresta guianesa um ar de Pagnol.

Eu decido descer do cume, sozinho dessa vez, e por um caminho que eu ainda não tinha feito. A progressão solitária em floresta pluvial possui uma magia particular. A vegetação parece se abrir e se fechar aos nossos passos. A solidão e propicia à escuta. Enquanto a crista do cume se estreita, e que eu preparo para descer, um som me interpela. É um macaco e o assovio que ele emite chama minha atenção. Sua silhueta aprece, revela uma longa cauda marrom orientada verticalmente para baixo e um corpo que parece inflado. Sua cabeça se distingue por duas protuberâncias hemisféricas simétricas. Poderia ser um Coxiú-Preto. Eu desço sem hesitar, entusiasmado por minha pseudo-descoberta científica e pronto para uma verdadeira conferência de imprensa. A noite é um momento propicio para a troca de informações com os membros da expedição.  Sob a luz das lâmpadas frontais e degustando um ti-punch e uma lata de cassoulet, é hora de compartilhar as descobertas, os sítios inventariados ou que ainda serão prospectados. Dessa vez, mais que um inusitado coxiú-preto, é um misteriosa lagoa que atrai todas as atenções. Situada no cume, ela é cercada por árvores de uma família ainda desconhecida na Guiana Francesa, a Lepidobotryaceae, da qual uma única espécie existe na América. Com o simpático nome de Ruptiliocarpon caracolito, essa espécie só é conhecida hoje na América Central, nos Andes e talvez no Suriname. A lagoa e suas condições hídricas excepcionais prometem descobertas interessantes. As equipes decidem de se dedicarem a ela mais tarde. Os dias seguintes me permitem de melhor compreender o trabalho de pesquisa de cada um. Eu também tive a oportunidade de observar a equipe SEAG (Sociedade Entomológica Antilhas-Guiana Francesa) em ação. Sua missão: recolher insetos nas mais elevadas condições altimétricas e ambientais do alto dossel florestal. * até ao solo. Essa associação de apaixonados desenvolveu procedimentos surpreendentes para a captura dos insetos. Por exemplo, um objeto estranho concebido com uma placa de plexiglás (acrílico) e uma calha, capaz de capturar com eficácia os insetos que voam na altura do homem no espaço aéreo da floresta. Mas esse é apenas um dos diversos sistemas utilizados. No final das contas, foi estocada no álcool ou eutanasiada no arsênio, uma inacreditável quantidade de insetos de todos os tipos (cerca de 20.000 amostras, representando 1.500 a 2.000 taxons). Alguns dentre eles viajarão até a Romênia para ser analisados por seu único especialista. Mas algumas espécies, novas para a Guiana Francesa, que até hoje só eram conhecidas nas montanhas andinas, já puderam ser identificadas.

A equipe “quiro” é outro grupo extraordinário. Os quiropterologos têm essa singularidade de começar a frequentar as trilhas ao cair da noite. Armados com grandes varas, eles esticam longas redes aéreas bloqueando o caminho para diversos animais voadores. Mas são os morcegos que interessam ao grupo. Todas as noites, Maël, Margot, Vincent e Nicolas se posicionam para instalar 10 redes de 12 m de comprimento em intervalos de altitude de 200 m, segundo um protocolo bem estabelecido. Os morcegos capturados nas malhas da rede serão pesados, medidos e terão uma amostra de tecido retirada para análise genética e depois eles serão soltos. A manipulação deve ser realizada com cuidado, pois os morcegos são frágeis e mordem sem piedade os dedos de desastrados e inexperientes. No cume plano, cerca de 40 espécies de quirópteros são identificadas dentre as 102 presentes na Guiana Francesa.

No último dia, eu retomo pela última vez o caminho do cume na esperança de rever o coxiú-preto. Durante toda a minha curta estada, eu pude observar uma impressionante diversidade de primatas. O lugar é perfeitamente preservado: babuínos, macacos-aranha, saguis, macacos-prego, e esse intocável Coxiú-preto. A alguns metros do cume, eu espero sentado em um cepo. E como uma recompensa e para a minha maior alegria, ele reaparece e eu consigo uma foto (mal tirada) do coxiú-preto (ver imagem abaixo).

Cada um de nós guarda sua barraca e as rotações do helicóptero se sucedem. A encosta da montanha se esvazia dessa presença humana pouco comum. Ainda falta Jean-François, da equipe AMAP, que partiu sozinho ao amanhecer com alguns cartuchos para colher o fruto que permitiria desvendar os segredos sobre a misteriosa árvore da lagoa.

Antes que o último helicóptero perca a paciência e quando começamos a nos preocupar, pois sabemos o perigo que é caminhar nessas trilhas escorregadias, eis que ele aparece na entrada da floresta, imundo, mas vitorioso, escorregando in extremis para o cockpit, segurando um ramo com dois frutos: os segredos da árvore serão enfim revelados.

O monte Itoupé reencontra provisoriamente sua tranquilidade, antes do segundo capítulo de seu estudo. Em setembro e outubro de 2010, uma nova missão multidisciplinar será organizada e dessa vez dedicada à ornitologia, grande fauna (em cooperação com o Serviço Nacional da Caça e da Fauna Selvagem – ONCFS) e á ictiologia.