Acompanhe o destino de alguns gramas de ouro: no coração da economia informal, desde o garimpo clandestino até o Brasil, ou através da exploração legal, quais são os percursos do ouro até se transformar em joia?

Desde o início dos anos 2000 a corrida internacional do ouro internacional disparou. Nos últimos meses, com a crise financeira colaborando, o preço do precioso metal bateu dia após dia, recordes históricos. Para se apropriar desse tesouro enterrado nos quatro cantos do globo (África do Sul, Rússia, Estados Unidos, China, Gana, Uzbequistão, etc.) a humanidade se agita. Na Guiana Francesa uns e outros se lançaram em uma corrida desenfreada para extirpá-lo do solo, vendê-lo ou trocá-lo, de forma legal ou não.

A ECONOMIA INFORMAL

Os dois motores funcionam em potência máxima, em um “tac-tac” ensurdecedor, a beira do barranco*. Um dos motores alimenta um grande canhão de água, segurado por um homem no fundo do buraco, que dirige a água sob pressão contra uma parede de laterita, transformando a terra em lama. A outra máquina bombeia a lama pelos tubos para derramá-la em uma “sluice box” * que captura, graças ao mercúrio contido nela, as lascas de ouro.  A equipe para as máquinas. José, o chefe do local, realiza o “levantamento”, a recuperação do ouro. Aquecido com o maçarico, o mercúrio se evapora e restando apenas o metal precioso. O resultado dessa semana de produção é decepcionante. “50 gramas”, aproximadamente 1.300 euros, suspira José, após cada pesagem em uma pequena balança eletrônica. 30 %, ou seja, 15 gramas retornam para os três operários do sítio. O resto é para o patrão.  Aos 53 anos, esse homem originário do Maranhão, é pequeno, sorridente, o rosto envelhecido prematuramente por décadas de garimpagem clandestina no Brasil e depois na Guiana Francesa. « Com as blitz da policia no rio, onde as pirogas, alimentos e combustíveis são apreendidos, tudo fica mais caro », ele lamenta.

CONTAS… DE OURO

Com sua parte “patronal”, ou seja, 35 gramas de ouro, José deve pagar as contas da semana. O combustível é a principal despesa. « É preciso contar 30 gramas por um barril de 250 litros, mas esse preço pode chegar a 100 gramas na estação seca, quando não há muita água no rio e é mais difícil transportar as mercadorias. », declara José. Com um barril, ele tem que conseguir suprir uma semana de produção. A isso devemos adicionar o custo com alimentação para a equipe toda: três trabalhadores, e a cozinheira do local. «Um quilo de arroz custa o equivalente a 2/10 de grama de ouro ou 5 euros », explica o responsável do local. José tem de pagar ainda os “petroleiros”, os entregadores que carregam nas costas, as bombonas de 50 litros de combustível – daí seu apelido. Para o transporte, em geral, um bom dia de caminhada, custa 5 gramas de ouro. José é um pequeno patrão, em um local de produção modesta em uma mina esgotada. Ele não tem nem piroga, nem quadriciclo como alguns sítios clandestinos mais importantes. Para a logística tudo passa pelos comerciantes da “currutela”, o nome dado às aldeias clandestinas que são os locais de transito, abastecimento e distração dos garimpeiros. A “currutela” mais próxima é localizada a cinco horas a pé do acampamento de José, às margens de uma baía. Esses comerciantes servem de intermediários entre as minas de ouro e Oiapoque, cidade fronteira com a Guiana Francesa, uma das bases de retaguarda do garimpo clandestino.

 UM COMÉRCIO INTERESSANTE

Na manhã seguinte, José e dois de seus empregados pulam da rede de madrugada para calçarem suas botas e tomarem a pista de quadriciclo que atravessa a floresta por muitas dezenas de quilômetros, com direção à currutela”. José tem suas 35 gramas de ouro no bolso, os empregados, suas receitas da semana e algumas economias a mais. Na chegada à aldeia eles atravessam um caminho lamacento de quadriciclo cercado por carbets (cabanas), mercearias-restaurantes, cabanas-pousadas, e um carbet-discoteca. Os três homens ocupam uma mesa no carbet de Lucia, uma quadragenária loira descolorida de pernas longas e um short muito colado marcando o corpo. É uma comerciante respeitada na aldeia. Ela vende frutas, legumes, refeições – um prato de feijão com arroz e frango – por meio grama de ouro, combustível, que ela transporta em embarcação própria. José lhe dá 15 gramas para pagar a alimentação entregue alguns dias antes e mais dois frangos a 1 grama cada, seis vezes o preço praticado em Oiapoque, a cidade fronteira. Lucia pesa em sua balança eletrônica e guarda. Pouco tempo depois, dez gramas passam da caixa de Lucia para o bolso de Valdo, seu pirogueiro, como pagamento de uma viagem noturna para transporte de uma carga, da Ilha Bela, local de trânsito para os clandestinos, à embocadura do rio Sikini, ao abrigo da fronteira.

José senta-se no carbet restaurante de Lucia com um amigo de longa data, Manuel, que ele conheceu nas minas clandestinas de Saint Elie e do Approuague. Degustando uma lata de cerveja e feijão com arroz e frango, eles se lembram dos “bons velhos tempos”: « Você se lembra daquele garimpeiro legalizado que nos vendia combustível na pista de Bélizon? », pergunta Manuel. « Sim, ele vendia tanto que os policiais perceberam e pegaram ele… », sorri José… Os dois homens se lembram também desse outro operador mineiro, legal que os fazia trabalhar discreta e, utilizando sua autorização de mineiro e que embolsava os lucros, em ouro, « E em Saint Elie, a gente encontrava tudo o que precisava nos comerciantes legalizados… », continua Manuel. « E nosso ouro, a gente podia até vender nas agências de ouro, em Caiena, sem precisar mostrar a identidade ou qualquer documento », complementa ele. « Você sabe, eu fiquei sabendo que os comerciantes de Saint Elie foram presos no ano passado e julgados na Guiana Francesa. E em Caiena, a maioria dos balcões de ouro foi fechada », afirma José.

De noite, Gordinho e Piauí, seus dois empregados vão ao “cabaret”, uma cabana simples, com duas mesas longas, bancos, uma grande geladeira, uma teve de tela plana, um aparelho de DVD e uma imensa caixa de som que toca em volume máximo, o hit planetário do DJ Francês David Guetta “I Gotta feeling”. E nos bancos, marcando o ritmo, quatro garotas de minissaia e decotadas, prontas para receber os clientes. « São três gramas de ouro o período, cinco gramas a noite toda », detalha uma garota. Gordinho e Piauí bebem algumas cervejas, a um preço puxado: meio grama de ouro por duas cervejas, ou seja, sete euros a lata, sete vezes mais do que em Oiapoque, a cidade fronteira.

OURO ILEGAL LAVADO EM OIAPOQUE

Para José, a viagem para ali, mas não para o seu ouro. Os 20 gramas que restam ao patrão viajarão com um garimpeiro que ganha o Oiapoque no dia seguinte. Eles serão entregues ao balcão do ouro que empresta uma parte da soma para a compra de duas máquina (700 gramas de ouro) de José na loja Jumaq, às margens do rio, em Oiapoque. Um empréstimo praticado pelo balcão, com uma taxa de juros muito elevada. « É o último saque», se alegra José, que retoma a pé sua mina na floresta, enquanto o ouro segue um percurso duplo: o oficial e o clandestino. Uma vez comprado por um balcão do ouro de Oiapoque, o ouro extraído ilegalmente da floresta guianesa é declarado “produto brasileiro originário do Oiapoque” na agência local da Receita Federal do Brasil do Oiapoque, mesmo se não existem minas na cidade fronteiriça. Trata-se de uma verdadeira operação de lavagem de mercadorias ilegais, permitida pelo Estado Federal Brasileiro, que deduz, no trâmite, uma taxa de 1%. Uma tabela recapitulava da alfandega brasileira aponta sete toneladas de ouro compradas pelos balcões do Oiapoque entre 2003 e 2008. Um número muito inferior ao total real de ouro em transito na cidade, já que os balcões de ouro do Oiapoque declaram somente entre um terço e a metade do que eles compram realmente, segundo uma pesquisa realizada em 2009 pela WWF. O resto é então vendido por baixo dos panos aos compradores informais e depois revendido no Brasil. O ouro de José e de milhares de garimpeiros da Guiana Francesa pode então ganhar o mercado internacional, em caixas do banco central federal em Brasília, ou ainda ir parar nas joias dos países do norte na ausência de procedimentos de certificação da origem do metal precioso.

A ECONOMIA FORMAL

Ao contrário de José e de seus companheiros de fortuna, os trabalhadores mineiros legais se engajam para respeitar ao máximo as regras fixadas pelo Estado. Suas práticas de exploração do ouro aluvionario foram obrigadas a evoluírem. Desde 2005, foi preciso substitui os tradicionais jatos de alta pressão por pás hidráulicas. O mercúrio deu lugar desde 2006 às mesas vibratórias e outro centrifugadores que separam o ouro da areia aurífera por gravimetria (cf. artigo precedente). « Nós nos tornamos os garimpeiros mais verdes da Amazônia » dispara, com sorriso nos lábios, um explorador, para resumir a evolução técnica recente conhecida pelo setor. Depois que as mesas vibratórias, minuciosamente reguladas para se adaptarem à granulometria do substrato, param de vibrar, as lascas isoladas são encaminhadas secretamente até os balcões de ouro caienenses.

O negociante que o mantém cuida das formalidades de exportação, pois 99% do ouro extraído da Guiana Francesa deixa o território. Esse intermediário simplifica consideravelmente a vida das pequenas e médias empresas que continuam a explorar o ouro na Guiana: em menos de 24h as lascas de ouro terão sido analisadas e o pagamento (em dinheiro ou par depósito bancário) terá sido realizado, após a consulta do sacrossanto “fixing” londrino que informa em tempo real a cotação da onça de ouro. Ao contrário do que acontece na metrópole, Guadalupe, Martinica e Reunião, a “lei da garantia” (Artigos 521-553bis do Código geral dos impostos) não se aplica na Guiana Francesa. O negociante não tem, portanto nenhuma obrigação legal de manter um registro (“livro de cadastro”) que traria informações sobre a identidade de seus fornecedores. Graças a essa falha regulamentar feita sob medida para a Guiana Francesa, os negócios de José e Manuel ainda verão belos dias pela frente. Entre 2000 e 2010, mais de 22 toneladas de ouro exportadas da Guiana Francesa tiram origem duvidosa, o equivalente a um pouco mais de 4 milhões de alianças.

MISTURAR PARA MELHOR TRABALHAR

Hoje, um único balcão de ouro funciona oficialmente na Guiana Francesa, em Caiena. Ele expede a sua produção integral para a Metrópole através de um refinador de Lyon encarregado e purificar o ouro. Em uma atmosfera sob vigilância e altamente protegida, o ouro passa de 96% (em média) de pureza para 99,99%, quando ele pode carregar o adjetivo “puro”, pois é separado de suas impurezas cobre, prata, etc.). O refinamento, tal como é praticado hoje em toda a Europa, torna muito difícil o acompanhamento do precioso metal. Por motivos técnicos e econômicos, ouros de origens e histórias diversas são derretidos juntamente para a obtenção de um produto standard (padronizado) anônimo e “sem história”: o ouro puro. « Nosso trabalho consiste em purificar o ouro. […] A garantia que nós oferecemos aos nossos clientes é a de uma purificação de ótima qualidade. E é isso que eles esperam, nada mais. Nós certificamos essa qualidade com o ouro vindo da Guiana Francesa, África ou de outro lugar, é outra coisa » explica um refinador. Uma vez purificado, o ouro puro e sem origem é moldado: lingotes, placas, fios, tubos ou grãos (semi-produtos), e até adornos.

AS PEQUENAS MÃOS DE OURO

Cabe aos “fabricantes joalheiros” (produtores de joias com pedras preciosas) ou “fabricantes bijuteiros” (sem pedras preciosas) fazerem suas escolhas. Nesse ateliê familiar de Aix-en-Provence, cada um cuida de estampar, dobrar, limar, serrar, soldar ou derreter meticulosamente o ouro. «Nada se perde, tudo é recuperado» explica sorrindo o patrão joalheiro, enquanto ele mostra o avental de couro que permite aos artesãos recuperarem cada rebarba, cada serragem e poeira de metal. Os sifões das pias são equipados com telas para que nada se perca. As blusas de trabalho são lavadas juntas a fim de recuperar, graças a uma grade, as lascas que escondem nas dobras das roupas. O patrão, um renomado fabricante de sotaque musical, esclarece as causas de sua preocupação: « Os tempos são realmente difíceis, com o preço do ouro atual, a mínima peça vale duas ou três vezes mais o seu antigo preço. Então com a crise, quem vai conseguir fazer as pessoas gastarem esse dinheiro a mais? Você pode me dizer?». Pois é preciso pagar o trabalho desses artesãos apaixonados por seu trabalho. Um tubo de ouro de 1 cm de diâmetro será cuidadosamente cortado a cada 3 a 5 mm para criar tantas alianças que só faltará o polimento. A placa de 0,8 mm estampada e cortada precisamente dará sua forma e seu relevo ao pingente, ao mapa da Itália, Córsega ou à imagem de Jesus da medalha de batismo. E a origem do ouro? As 22 toneladas duvidosas vindas da Guiana Francesa? « Bom isso, não é nosso problema, não podemos fazer tudo. É um problema da Guiana Francesa. Não podemos nos responsabilizar por tudo o que acontece por lá. “Felizmente” dispara nosso fabricante.

ATRÁS DA VITRINE

Última etapa antes do grande momento da compra: a valorização do produto. É o trabalho dos distribuidores, que sua marca divide espaço com os vendedores apressados de cigarros de contrabando do Bulevarrd Barbès (75018) ou os adidos ministeriais da Praça Vendôme (75001). Nos dois casos, as diademas em ouro brilham ao máximo, dispostos em seus estojos de cor púrpura ou violeta, sob o olhar fascinado desse jovem homem que se resignou a enfrentar a chuva forte. O dia dos namorados se aproxima. O que fica das questões que pesam sobre o ouro exportado da Guiana Francesa?  Mercúrio? Traíras contaminadas? Populações do Maroni e do Oiapoque ameaçadas? Na atmosfera fechada de uma bijuteria parisiense de luxo, entre tapete vermelho e iluminação tamisada, enquanto o prelúdio de Aïda enche suavemente a peça, uma funcionária de sorriso agradável vestindo um impecável tailleur cinza traz em um murmúrio uma resposta hesitante: « A origem do ouro… Não, realmente senhor, essa pergunta eu não posso responder. […] Isso não, é verdade, nunca nos perguntaram antes. “Aguarde alguns instantes, eu vou perguntar a um colega” Ele não sabia mais do que ela. « É uma verdadeira problemática para a nossa profissão, nós somos conscientes disso e estamos tentando recorrer a todos que desejam nos ajudar. Mas o caminho ainda é longo, nós sabemos. Isso levará tempo » anuncia realista, a presidente delegada da União francesa da bijuteria, joalheria, ourivesaria, pedras e pérolas. Esperamos, para todos nós, que não será uma questão do “tempo” geológico…”