« Eu tive o azar de não pensar como os mais fortes, de não ser da opinião deles, nem às suas ordens, e esse foi o meu crime. »

Pierre Vaux, Caiena, 16 de agosto de 1858.

Fevereiro de 1848, uma nova revolução estoura em Paris; o rei Louis-Philippe abdica e deixa a França. É proclamada a segunda República, o voto universal é instituído, a escravatura é abolida.

Hippolyte Carnot, o ministro da Instrução pública, lança um apelo aos 36.000 professores da França:

« Eu peço a eles que continuem a construir a República! Não se trata como no tempo de nossos pais, de defendê-la contra o perigo da fronteira; é preciso defendê-la contra a ignorância e a mentira, e essa tarefa pertence a eles. (…)

Possa minha voz tocá-los até as nossas últimas cidades. » (Circular aos reitores, 6 de março de 1848).

MESTRE DA REPÚBLICA

Vamos voltar um pouco no tempo: estamos, em janeiro de 1848, em frente à école de garçons (escola de meninos) do vilarejo de Longepierre (Saône-et-Loire). Pierre Vaux, o professor, observa com orgulho seus alunos deixarem a sala de aula. Hoje eles os libera um pouco mais cedo. Assim ele comemora com eles a sua primeira vitória. O Conselho municipal acaba de votar a gratuidade do ensino para todas as crianças. Isso não se faz sem tropeços, como ele escreveria mais tarde: « Os importantes (…) protestam contra essa medida e nós podemos ouvi-los amaldiçoando por todos os lados: que aqueles que desejam se instruir paguem por isso; que as crianças pobres se tornem tão instruídas quanto as suas; que elas frequentem as salas de aula durante o verão todo e que eles não encontrem pequenos criados. »

Vaux se mudou para Longepierre (700 hab.) em 1844, após deixar a Escola normal Mâcon. Borgonhês, ele se integra rapidamente na cidade. Ele se casa com a bela Irma, uma moça da região, e esperava poder ver seus filhos crescerem. Ele não é um revolucionário, apenas um homem consciente das injustiças de seu tempo. Sua vida, entretanto vai tomar um novo rumo após fevereiro de 1848.

Não se trata simplesmente para ele de ser um bom professor, ele considera que ele tem um dever em sua qualidade de homem instruído. Aos 27 anos, Vaux decide se engajar na vida política de sua cidade. Ele tornou-se secretário da prefeitura, se posiciona contra o pároco e principalmente os notáveis (pessoas importantes) que detêm a maioria das terras do vilarejo.

Sua atitude não agrada nem um pouco. Louis Napoléon Bonaparte se torna Presidente, o espírito revolucionário está ultrapassado. O inspetor escreveu em seu relatório (31 de novembro de 1849): « Capacidade e moralidade: bom. Entusiasmo: aceitável, tendência para o socialismo.  » Em abril de 1850, Vaux é despedido por agitação política. Ele não pode mais lecionar no departamento e deve deixar seu alojamento em oito dias. Quatro mil professores na França vivem então o mesmo destino, acusados de fomentar o questionamento da ordem social.

Com alguns amigos, Vaux decide então disputar a prefeitura. Seu partido vence as eleições de novembro de 1850, o professor se torna prefeito. A vitória é bela, mas é breve. Com essa eleição Vaux fez inimigos irredutíveis. Entre eles, Henri Gallemard, o albergueiro, que também cobiçava a cadeira do prefeito e o governador da província. Esse último vê essa eleição como um ultraje e se recusa a sancionar essa vitória. Gallemard assume então a prefeitura, enquanto Vaux estabelece a oposição. Foi nesse contexto político que se iniciam os incêndios de Longepierre.

COMPLÔ EM BORGONHA

Na noite de 2 de março de 1851, dois incêndios são provocados no vilarejo. Os bombeiros tentam de tudo para apagar as chamas, mas os telhados de palha não facilitam a vida deles. Os estragos são consideráveis e isso foi só o começo. Nos meses seguintes, uma boa parte do vilarejo foi reduzida a cinzas. Restos de fósforos são encontrados juntos ao sinistro. Quem são os incendiários? « Com certeza os “vermelhos” que queriam a prefeitura », é o que ouve nas ruas. O rumor foi lançado e aos poucos se expandindo. O professor e seus amigos são vistos como perfeitos bodes expiatórios. Roubaram sua vitória, é hora da vingança.

Vaux é aprisionado em maio e solto após 24 dias por falta de provas. Outras prisões acontecem, mas a investigação patina enquanto as casas continuam a serem queimadas.

Um Certo Balleaud, já conhecido da policia, foi então preso com notas falsas. «Esse dinheiro era o preço do meu silêncio», ele declara diante do juiz. Ele viu tudo. Os falsários e os incendiários são do mesmo bando, dirigido pelo professor. Durante a confrontação dos dois homens, Balleaud não consegue nem descrever a casa de Vaux, onde ele teria participado de uma reunião secreta. « Pelo amor de Deus! Isso é claro », exclama o acusado, ele nunca pôs os pés na minha casa.

Certo de sua inocência Vaux permanece confiante na justiça. Ele estava errado. O golpe de estado do dia 2 de dezembro de 1851 de Louis Napoléon Bonaparte põe fim à República. O vice-prefeito de Chalon-sur-Saône, servidor dedicado do Império, declara querer lutar « dia e noite contra desordem e a anarquia ». O oportunista prefeito Gallemard, se torna bonapartista, e depõe contra o perigoso criminoso vermelho, Vaux. Ele não podia falar antes por medo de represálias. Em 29 de abril de 1852, Pierre Vaux foi encarcerado. Um falso processo acontece dois meses mais tarde:

« – Eu considero Pierre Vaux como o homem mais leal, o mais honesto e íntegro que eu conheço depõe Sr. Costes, cobrador de impostos municipal.

–  Não teria o senhor declarado anteriormente que ele segurava com uma mão o punhal do socialismo e com a outra uma tocha incendiária?

A essa pergunta do advogado-geral, Sr. Costes balbucia:

–  Sim, mas…

O magistrado exerce sua influência sobre o júri. Ele corta secamente:

–  Está bom, sentem-se! »

Sr. Nadaud & Sr. Pelletier, O calvário de um professor, Pierre Vaux, 1926.

Vaux é condenado a trabalhos forçados em perpetuidade. Para o Le Journal de la Côte-d’Or, a justiça foi feita: « É o ódio contra os ricos, ou seja, contra aqueles que possuem, acendem e guiam a tocha dos incendiários.».

Entretanto os incêndios continuam em Longepierre. As tensões entre aldeões atingem um o seu ápice. Em abril de 1855 ocorre um fato inesperado e dramático: Balleaud, a testemunha chave da acusação entrega o jogo. Ele declara ter mentido e denuncia seus cúmplices e seu comanditário: Gallemard. Preso, o prefeito se enforca em sua cela.  O erro judiciário foi provado, mas reconhecê-lo ameaçaria o prestígio da magistratura imperial.

Os pedidos de anistia feitos por Irma Vaux foram recusados. A revisão do processo nunca foi feita. Após ter passado dois anos de sofrimentos nas prisões portuárias de Toulon e Brest, Vaux é embarcado na fragata Armide com destino a colônia penitenciária da Guiana Francesa.

A ilha dos prisoneiros políticos

«A Ilet-la-Mère é sem objeção, o ponto mais bem escolhido para um estabelecimento destinado aos extraditados políticos. Situada a duas horas de Caiena, essa ilha de vegetação magnífica, é fonte de madeira, água e recursos de culturas. A margem sul, completamente abrigada contra os ventos do largo pelo monte escarpado que atravessa a ilha em seu comprimento, reúne todas as condições de bem-estar e salubridade.  »

Saillard, diretor-adjunto dos estabelecimentos penitenciários da Guiana Francesa, 15 de outubro de 1853.

Pierre Vaux, matrícula 3680, chega a Ilet-la-Mère em 17 de setembro de 1855. Situada no largo da costa guianesa, a ilha tem vocação de abrigar os deportados políticos. Eles representam mais da metade dos 448 homens detidos nesse pequeno rochedo de cinquenta e quatro hectares.

Desde o motim de1853, as penas mais cruéis são aplicadas, « para a menor desobediência, a menor irregularidade no cumprimento das ordens do comandante ou do carcereiro. » (L. Watteau, Quatro anos em Caiena, 1859). Para «fugir», Vaux escreve muito à Irma. Ele conta a ela sobre o seu cotidiano: seus dias de trabalho com a terra, a sopa ruim que é servida nas três refeições e sua única satisfação, a de não ficar mais acorrentado. Os presos letrados são, entretanto, “uma mercadoria rara”. Em dezembro de 1855, ele foi enviado para “le Gardien”, uma das quatro penitenciárias flutuantes da Guiana Francesa para o cargo de escrevente público.

A LIBERDADE… OU QUASE

As penitenciárias flutuantes são prédios abandonados da marinha. Eles servem ao mesmo tempo como enfermaria, prisão e depósito de extraditados em sua chegada Vaux deve permanecer lá, mas devido ao seu trabalho ele sempre tem a oportunidade de ir à Caiena. Com os trabalhos que realiza para a burguesia local, ele consegue enviar um pouco de dinheiro para a sua família. Em abril de 1859, nova mudança, ele se torna empregado do hotel do governo. Vaux é um privilegiado. Além de uma melhor gratificação ele tem o direito de vestir roupas civis. Todavia, apesar do apoio do Governador da Guiana Francesa, seus pedidos de revisão permanecem sem resposta. Entendendo que ele não conseguiria voltar para a França, Vaux tenta então convencer Irma de ir até ele.

Mesmo com a travessia gratuita e a viagem indenizada, poucas mulheres ousaram ir ao encontro de seus maridos no “inferno verde”. Quando ele já perdia as esperanças, Irma lhe escreve sobre sua intenção de atravessar o Atlântico. Após dois meses de travessia ela desembarca em Caiena em outubro de 1861 com seus quatro filhos.

Lá, as estradas são rios

 

(Anne-Irma Vaux, Memórias, cerca 1925.)

A família está novamente reunida após nove anos de separação. O Governador da Guiana Francesa que acredita na inocência de Vaux, lhe arrenda uma de suas propriedades: a casa grande abandonada de Hermitage, situada próxima à cidade de Roura – à cerca de dez horas de Caiena em piroga.

Vaux contrata vários prisioneiros e todos se empenham no trabalho para ressuscitar os 100 hectares com madeira e culturas. A floresta equatorial reserva algumas surpresas aos Borgonheses: « Certa manhã, nossa plantação que estava maravilhosa na véspera, não tinha mais nenhuma folha » escreveu a caçula Anne-Irma em suas memórias. A aprendizagem da vida florestal é feita com os vizinhos, liberados recentemente. Eles sabem como proteger as mudas de café contra as formigas quenquém e é com eles que Vaux constrói sua primeira piroga. Ele toma gosto pelo trabalho com a madeira. Ele tem um certo know-how obtido no tempo em que foi um aprendiz de tamanqueiro. O professor se torna então carpinteiro e ele fez bem. O trabalho da madeira em pouco tempo garante o essencial dos rendimentos da família. Ferramentas, carrinhos de mão, móveis, Vaux fabrica de tudo e não hesita em inovar. Ele concebe algumas máquinas impressionantes: moinhos com cilindros de madeira para amassar a mandioca, triturar cana de açúcar ou urucum, e uma máquina de lavar o ouro.

Nessa época, os pedidos de graça começam enfim a serem respondidos. A condenação à perpetuidade é reduzida para dez anos. Pierre Vaux está a dois passos de se tornar um homem livre, porém obrigado a residir na colônia pelo o resto de sua vida.

Tudo ia muito bem até que o chefe da família se encontra debilitado, esgotado pelas febres e anos de privações. Após 1867, seus conhecidos o convencem a deixar Hermitage. A família se divide então entre Roura, onde os dois filhos abrem um pequeno comercio e Ilet-la-Mère onde a filha Anne-Irma dirige a cantina da penitenciaria.

RETORNO À ILET-LA-MÈRE

Anne-Irma conseguiu a gerência da cantina da penitenciária Ilet-la-Mère, com seu marido, um ex-militar. Único comércio do lugar, a cantina também funciona como mercearia e loja de miudezas. Os condenados, que não admitidos no interior da loja, são atendidos por um guichê e podem adquirir tabaco ou rum.

Nessa época époque, não existem mais extraditados políticos em Ilet. A administração tomou o hábito de liberar todos os detentos velhos, convalescentes, enfermos e inválidos. São centenas de homens que foram empregados para trabalhos leves tais como jardinagem ou fabricação de chapéus de palha. Essa penitenciária se tornou como escreveu Paul Mury « o lugar de repouso dos veteranos da extradição».

Vaux passa a viver lá quase permanentemente. Vítima de uma paralisia crônica das mãos, ele já não traz ajuda alguma para seus filhos. Ele passa seus dias caminhando e lendo algumas obras da biblioteca dos padres jesuítas. Pierre Vaux morre no hospital da penitenciária Ilet-la-Mère no dia 12 janeiro de 1875. Sua família volta para a França em 1876.

EPÍLOGO

Em 1893, Pierre Armand Vaux, o adolescente que corria nas matas da Guiana Francesa, o comerciante de Roura, foi eleito deputado de Côte d’Or. Ele nunca desistiu da ideia de restabelecer a memória de seu pai. Sua perseverança foi recompensada. Em 16 de dezembro de 1897, a justiça pronuncia a reabilitação de Pierre Vaux, 22 anos após a sua morte. Nessa época, o erro judiciário tem um novo rosto, o de Alfred Dreyfus…